Chefe do Unicef dá entrevista à Firjan

UNICEF E FIRJAN CONTRA
VIOLÊNCIA A CRIANÇAS


Garantir os direitos de crianças e adolescentes também deve passar pelo setor privado, pelo papel estratégico que desempenha na construção de uma sociedade. Na celebração dos 15 anos do SESI Cidadania, no fim de março, a Firjan e o Unicef assinaram um memorando de entendimento estabelecendo uma cooperação para mobilizar empresas, organizações, escolas e territórios para articulação e disseminação de ações de prevenção às violências e promoção de oportunidades para jovens em situação de vulnerabilidade socioeconômica. O encontro reuniu lideranças dos setores privado e filantrópico para a reflexão sobre o investimento em projetos de responsabilidade social, que sirvam de inspiração para ações de empresas, já parceiras do Unicef e associadas da Firjan/CIRJ.

 

O SESI Cidadania tem participação fundamental para o oferecimento de oportunidades de formação profissional, através de cursos da Firjan SENAI, e consequente inclusão no mercado de trabalho, bem como de desenvolvimento humano. Para falar sobre a proteção dos direitos de crianças e adolescentes no estado, a Carta da Indústria entrevistou, com exclusividade, Flavia Antunes Michaud, chefe do Unicef no Rio de Janeiro.

 

Carta da Indústria: Quais ações o setor privado pode promover para prevenir violências contra crianças e adolescentes?  
Flavia Antunes Michaud: O setor privado é um ator fundamental para a prevenção de violências contra crianças e adolescentes, pelo papel estratégico que desempenha na construção de uma sociedade. Também por ser um dos motores da economia, pode ser impactado negativamente quando a coesão social é ameaçada, o que inclui a questão da violência. Assim, prevenir as violências é bom para a sociedade e para os negócios, sendo um investimento em que todos ganham. Além disso, o setor privado pode engajar-se em várias ações como: treinamento de funcionários, fornecedores e parceiros sobre prevenção, reconhecimento de sintomas de violência e o encaminhamento de casos de crianças e adolescentes vítimas.

 

CI: A Firjan e o Unicef assinaram um acordo para investimento em projeto de responsabilidade social junto às empresas fluminenses para proteção de crianças e adolescentes. Fale sobre essa parceria. 
Flavia Antunes Michaud: Na verdade, no fim de março, o Unicef e a Firjan assinaram um memorando de entendimento estabelecendo uma cooperação para mobilizar empresas, organizações, escolas e territórios para articulação e disseminação de ações de prevenção às violências e promoção de oportunidades para jovens em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Essa é uma parceria importante para nós, pois acreditamos que o setor privado, principalmente a indústria, deve ser um dos protagonistas na construção de um futuro mais justo para a infância no estado do Rio de Janeiro, que apresenta números tão preocupantes em relação à violência letal, sexual e física de crianças e adolescentes. Sabemos que uma vida protegida por inteiro significa também acesso à educação, à saúde ao lazer e à profissionalização para cada menina e menina, sem exceção. Um exemplo são os projetos educacionais e de profissionalização do SESI e do SENAI que geram oportunidades a muitos adolescentes em jovens que, sem elas, poderiam entrar nas estatísticas daqueles que estão fora da escola ou que não conseguem sonhar ou visualizar um futuro profissional.

 

CI: A quais tipos de violência crianças e adolescentes estão mais expostas?  
Flavia Antunes Michaud: No ano passado, lançamos o relatório Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, que reuniu dados e análises entre 2021 e 2023. No estado do Rio de Janeiro, 1.261 crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta no período. Somente em 2023, o número de mortes violentas desse grupo aumentou quase 20% ante o ano anterior, na contramão da tendência nacional. A grande maioria das vítimas letais (96%) tinha entre 10 e 19 anos, nesses três anos, no estado. Entre as mortes, 33% foram cometidas por policiais. Já os números de estupro contra crianças e adolescentes têm crescido no país. No Rio, observa-se um leve declínio, que deve ser visto com cautela, devido a subnotificações. De 2021 a 2023, foram 11.963 casos de estupro de crianças e adolescentes até 19 anos no estado.

 

Flávia em mesa de debates
Flávia (à esquerda), Alexandre dos Reis, Eliane Damasceno (última á direita) e mais debatedoras no evento dos 15 Anos do SESI Cidadania

 

CI: Como proteger crianças e adolescentes dessas violências? Quais ações preventivas podem ser adotadas?  
Flavia Antunes Michaud: Toda criança e adolescente precisa ser protegida, e isso deve ser um trabalho de toda a sociedade, pois os desafios são gigantes. O investimento estratégico em políticas públicas de saúde, educação, assistência social, empregabilidade e no fortalecimento das redes de proteção são algumas das formas mais sustentáveis de garantir que a prevenção aconteça. As escolas, por exemplo, são espaços de proteção e precisam ser fortalecidas. O investimento social privado tem um papel fundamental de catalisar políticas onde atua e criar ações preventivas. As empresas precisam ter um investimento estratégico, sempre em parceria com organizações que conheçam a pauta e os desafios das comunidades.

 

CI: Sabemos que o Brasil tem um estatuto de proteção à criança. Fale um pouco sobre ele. Precisa ser revisado?  
Flavia Antunes Michaud: O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é um marco fundamental da história brasileira, que mudou a vida de meninas e meninos que deixaram de ser considerados ‘menores em situação irregular’ e começaram a ser reconhecidos como sujeitos de direito. A legislação brasileira é exemplo mundial, visto que, através dela, crianças e adolescentes passaram a ter direito à proteção integral, por meio de um Sistema de Garantia de Direitos (SGD) que inspirou muitos países. Sendo uma legislação que acompanha dinâmicas sociais e políticas, o Estatuto sofreu alterações e adaptações ao longo dos anos para atender a novas demandas.

 

CI: Qual é o papel do setor privado na proteção de adolescentes e jovens que compõem seu quadro de aprendizes ou funcionários?  
Flavia Antunes Michaud:  Familiares, cuidadores ou os próprios jovens trabalham em empresas ou passam por elas no desenvolvimento de suas carreiras. As empresas devem saber como lidar quando identificam que os funcionários passam por situações de violência, seja acionando os órgãos competentes ou oferecendo apoio em situações específicas, quando, por exemplo, escolas são fechadas por conta de episódios de tiroteios. Além disso, o setor privado pode atuar para prevenir essas violências e garantir direitos, oferecendo oportunidades e investindo em ações de impacto social. Para isso, o tema deve ser pautado pelas lideranças mais altas das empresas, de modo a mobilizarem a todos os funcionários nesse engajamento.

 

CI: Qual o papel do setor privado na tomada de atitude ao identificar violências contra crianças e adolescentes? 
Flavia Antunes Michaud: É importante que toda e qualquer pessoa saiba como reconhecer uma situação de violência contra crianças e adolescentes e acionar os órgãos competentes, bem como os canais de denúncia pertinentes, como o Conselho Tutelar e a Polícia. Nesse sentido, também é importante que os funcionários das empresas estejam treinados sobre como agir para proteger as vítimas e evitar a revitimização.

 

CI: Já existem programas e ações por parte de empresas contra violências a crianças e adolescentes?  
Flavia Antunes Michaud: Uma maneira prática que empresas podem contribuir para o enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes é por meio da promoção de oportunidades de formação e de empregabilidade para adolescentes e jovens. Um exemplo seria a iniciativa “Um Milhão de Oportunidades”, que é uma aliança multissetorial, que mobiliza empresas, sociedade civil, governos e, especialmente, jovens para promover oportunidades de formação profissional, participação cidadã e trabalho decente para pessoas entre 14 e 29 anos, em situação de vulnerabilidade. Em dois anos, o “1MiO” já reúne mais de 200 empresas que oferecem oportunidades de desenvolvimento e de inserção no mundo do trabalho, de maneira decente, gerando mais de 900 mil oportunidades.

 

CI: Qual o papel das empresas na proteção dos direitos da criança e do adolescente?  
Flavia Antunes Michaud: Acreditamos que o setor privado seja um ator de influência para diferentes questões relacionadas aos direitos da infância e da adolescência. Empresas, independentemente do porte ou setor, podem contribuir na construção de um mundo mais justo, equitativo e sustentável para crianças e jovens que fazem parte das comunidades e ambientes em que as companhias operam. Através de seus produtos e serviços, cadeia de suprimentos, marketing, bem como de sua ação ambiental e investimentos, as empresas impactam a vida de crianças e suas famílias. É por isso que o Unicef trabalha em parceria com o setor privado, para que, cada vez mais, as empresas compreendam os direitos fundamentais de crianças e adolescentes e como suas ações podem ajudá-los.

 

CI: Como Unicef aborda a questão da prevenção e do combate ao trabalho infantil? 
Flavia Antunes Michaud: O trabalho infantil é uma das formas de violência contra crianças e adolescentes e precisa ser enfrentado com estratégias integradas e intersetoriais. É o produto combinado de muitos fatores, como pobreza, normas sociais que o justificam e falta de oportunidades de trabalho decente para adultos e adolescentes. Não é apenas uma causa, mas também uma consequência das desigualdades sociais reforçadas pela discriminação. A ação eficaz contra o trabalho infantil deve abordar as vulnerabilidades que as crianças enfrentam e requer a implementação de políticas e programas comunitários que possam contribuir para a eliminação do trabalho infantil por meio de soluções intersetoriais, que garantam que crianças e adolescentes estejam na escola, aprendendo, e que, ao chegarem na idade certa, a entrada no mercado de trabalho seja feita de maneira digna e segura.

 

CI: Além das violências física, psicológica e sexual, o que mais pode ser considerado violência contra crianças e adolescentes?  
Flavia Antunes Michaud: Essas são as principais violências que o Unicef aborda no Brasil, e delas deriva um universo de violações dos direitos das crianças, que passam por impacto no direito à saúde, à educação, à cidadania e à saúde mental. Todos esses direitos precisam ser garantidos, e uma das formas de fazê-lo é quebrar o ciclo das violências.