Patricia Peck, PhD e especialista em direito digital, proteção de dados e cybersegurança

CIBERSEGURANÇA E ÉTICA
NO MUNDO DIGITAL


Os avanços da tecnologia digital, com a chegada mais recente da Inteligência Artificial (IA) generativa e seu uso expressivo nas redes sociais, vêm impondo desafios para a proteção das marcas e das pessoas físicas. “Há um grande dilema social, de que há pessoas que pensam que a internet é uma terra sem lei, onde tudo é permitido. E não é bem assim. A legislação brasileira pode ser aplicada tanto no ambiente presencial quanto no online”, explica a advogada Patricia Peck, especialista em Direito Digital, Proteção de Dados, Cibersegurança e Inteligência Artificial.

 

Autora de 49 livros sobre Direito Digital, PhD em Direito Internacional, CEO e sócia-fundadora da Peck Advogados e membro titular do Comitê Nacional de Cibersegurança, Patrícia participou da Semana da Integridade da Firjan, neste mês de setembro, falando sobre “Ética e Segurança: como proteger reputação e patrimônio na sociedade digital”. A advogada concedeu esta entrevista exclusiva para a Carta da Indústria, em que detalha o que empresas e pessoas, famosas ou não, precisam fazer para manter intactos seus patrimônios e reputações em tempos de fraudes digitais.

 

CI: Como proteger a reputação empresarial na sociedade digital, lembrando que esse foi um dos temas de sua palestra recente na Firjan?  
Patricia Peck: Na sociedade digital, a reputação passou a estar em dados e ser diretamente afetada a partir das conexões e conteúdos associados à marca da empresa. Logo, a imagem da marca é construída a partir de todas as suas interações com os públicos internos e externos, nas mais diversas formas e interfaces. O grande desafio está no controle dessa comunicação, que é mais descentralizada. E como lidar com a percepção de valor que pode ser afetada tão rapidamente, bastando um mero deslize, de uso de expressão inadequada, para escalar para uma situação de crise? Logo, a proteção está em um diálogo transparente e em monitorar a internet para saber o que está ocorrendo com a imagem e a reputação digital, para poder agir imediatamente nos casos que tragam um risco ou um dano à marca. 


CI: E como proteger a reputação da pessoa física no ambiente digital?  
Patricia Peck: De certa maneira, se aplicam também as mesmas recomendações, mas quando estamos diante das interações entre as pessoas, o perigo mora no comportamento de superexposição. Ao mesmo tempo que há um efeito positivo de poder se expressar na “praça pública digital”, ver e ser visto, também há o resultado colateral de impactar a reputação com efeitos que podem ser irreversíveis. Logo, é recomendável sempre refletir bem antes de compartilhar conteúdos, sendo melhor o princípio da cautela, assim como ser mais seletivo na escolha das conexões, para evitar que pessoas ou situações mais tóxicas afetem a sua reputação. Afinal, todo ato de "curtir" é concordar, e isso terá responsabilidade. Mesmo a pessoa física deve periodicamente fazer uma busca na internet e mídias sociais para descobrir o que está associado ao seu nome. E, dependendo do caso, realizar uma denúncia nas plataformas para solicitar alguma remoção de conteúdo.

 

CI: Há muitos casos de pessoas e empresas que são atacadas ou até mal interpretadas nas redes sociais e isso pode se tornar um prejuízo para negócios, famosos ou pessoas comuns. Que medidas a Justiça tem para proteger os usuários e como os advogados podem defendê-los?  
Patricia Peck: A legislação brasileira pode ser aplicada tanto no ambiente presencial quanto no online, pois as leis são válidas no ambiente digital. Nesse sentido, é sempre importante gerar a preservação da prova, ou seja, da evidência daquele fato, para conseguir fazer valer os seus direitos. Por exemplo, se for um caso de ofensa, vai se enquadrar em crime contra a honra, previsto pelos artigos 138 (calúnia), 139 (difamação) e 140 (injúria) do Código Penal. Também se aplica a proteção da imagem, honra e reputação prevista pela Constituição Federal, artigo 5º, inciso X, e cabe reparação por danos causados, conforme os artigos 20, 21, 186, 187 e 932 do Código Civil. 

 

Ou seja, há liberdade de expressão, podemos declarar o que pensamos, mas há responsabilidade, a pessoa responde pelo que disse. Já se a ocorrência for de uma situação de fraude digital, em que alguém está usando o nome da pessoa para fingir que é ela, para cometer algum golpe, está enquadrado na Lei 14.155/2021, que alterou o Código Penal, criando a figura da Fraude Eletrônica, § 2º-A, § 2º-B e § 3º do artigo 171 (estelionato digital). Se for caso de invasão de dispositivo, vai aplicar o artigo 154-A. Portanto, há muitos mecanismos de defesa jurídica.

 

Patricia Peck faz palestra na 5ª Semana da Integridade da Firjan: "É preciso criar uma cultura de segurança digital para cidadãos, incluindo criança, adolescente e idoso" (Fotos: Alexandre Brum/Firjan)

 

CI: E em relação à proteção ao patrimônio e dados nesses tempos digitais. São muitos golpes que acabam lesando as companhias e pessoas. Como evitar esses ataques? E como puni-los?  
Patrícia Peck: Primeiramente, é preciso criar uma cultura de segurança digital para cidadãos, incluindo criança, adolescente e idoso. Pois isso afeta tanto a vida pessoal como a profissional. As empresas devem investir em campanhas educativas, e essa orientação precisa também acontecer na escola e na família, para que possamos construir uma proteção mais forte, para que os cuidados e recomendações se tornem um hábito. Sem esse letramento de cibersegurança, é difícil combater a criminalidade digital, pois os criminosos são espertos e estão sempre aprimorando a técnica, vão ficando cada vez mais sofisticados. Puni-los não é tarefa fácil, pois a ação precisa ser rápida; além disso, seria importante aprimorar a legislação para termos uma prova forte de autoria, que é essencial nesses casos. Mas é possível mitigar os riscos com equipes preparadas, sistemas atualizados e até mesmo a Inteligência Artificial, que pode ser uma grande aliada para fortalecer a segurança digital. O ponto principal é que exige um investimento contínuo em tecnologia, capacitação e educação.


CI: Como fica a ética nessas questões? Qual a punição jurídica para “fake news”, calúnia e difamação pela internet?  
Patricia Peck: Há um grande dilema social, de que há pessoas que pensam que a internet é uma terra sem lei, onde tudo é permitido. E não é bem assim. Como já falado antes, as leis vigentes podem ser aplicadas no contexto da internet, como no caso de crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria). O famoso termo “fake news” na verdade remete a um conceito de desinformação, notícia falsa, ou seja, um conteúdo inverídico ou manipulado que tem objetivos maliciosos. Para esse tema, há discussões legislativas buscando regular e punir a desinformação, como o PL das Fake News (PL 2630/2020), mas ainda não temos uma lei específica para combater esse grande mal da internet. No entanto, as plataformas já vêm atualizando seus termos de uso para permitir remoção de conteúdo por denúncia, o que é um avanço, inclusive para atender à premissa de ação rápida, já que no ambiente digital o conteúdo se espalha rapidamente e pode se perpetuar, aumentando, e muito, o dano causado.

 

CI: São situações difíceis de serem comprovadas, para serem acionadas?  
Patricia Peck: Acredito que o desafio está em se garantir a liberdade de expressão e ao mesmo tempo coibir o abuso. Essa medida de equilíbrio não é trivial. Acaba exigindo muito mais atenção com o princípio da clareza das regras, para que sejam seguidas. Hoje vivemos uma sociedade de relações humanas, mas também através de algoritmos, e esse novo modelo faz com que a informação chegue até a pessoa, mesmo que ela não tenha solicitado. Por isso, é mais fácil identificar a ocorrência, pois está tudo muito mais documentado, mas é uma tarefa mais complexa barrar ou fazer uma informação deixar de circular pela rede. Novamente, a colaboração da sociedade, das plataformas e das autoridades é um fator crucial para que possamos ter um ambiente mais ético, seguro e saudável na internet.


CI: E em caso de golpes financeiros, a tecnologia está avançada o bastante para rastrear e chegar aos mandantes?   
Patricia Peck: Podemos dizer que sim. Temos visto diversas ações de combate às fraudes financeiras, que são cada vez mais bem articuladas. O setor financeiro é um dos que mais investem e se aprimoram no combate a esses delitos, permitindo que o combate à criminalidade seja cada vez mais efetivo. No entanto, ainda cabe melhoria principalmente quando lidamos com crime organizado digital, com quadrilhas que podem estar em qualquer lugar do planeta. Essa capacidade de aplicar a punição para quem está fora do Brasil ainda tem sido um dos maiores desafios. Por isso, é bom que o usuário saiba se prevenir para não virar uma vítima.

 

CI: Como membro do Comitê Nacional de Cibersegurança, que medidas são discutidas no Comitê? Quais as principais preocupações?  
Patricia Peck: O Comitê Nacional de Cibersegurança (CNCiber) reuniu uma série de especialistas, eu sou uma delas, com a missão de estudar e apresentar propostas para construção de uma possível agência nacional que possa melhor a cibersegurança no Brasil. Sendo assim, temos Grupos de Trabalho que estão reunidos em torno da atualização da Política Nacional de Cibersegurança e de como podemos viabilizar a sua execução no país.


CI: Direito Digital, Propriedade Intelectual e Compliance são temas nos quais a senhora é reconhecida. Como eles têm avançado na sociedade atual?   
Patricia Peck: Tenho mais de 25 anos de atuação nessas áreas. Nesse tempo, passamos por muitas mudanças da tecnologia e da própria sociedade. Com isso, há a necessidade de atualização da legislação para acompanhar as expectativas sociais e trazer novas recomendações para guiar o comportamento de indivíduos e instituições. Considero que avançamos muito desde o início dos anos 2000, quando esses temas pareciam muito distantes da realidade jurídica, com leis como o Marco Civil da Internet e mais recentemente a LGPD. Mas ainda há muito a fazer, visto que agora vivemos o desafio da Inteligência Artificial e da deepfake (técnica que permite alterar um vídeo ou foto com ajuda da IA).

 

CI: Que questões éticas mais importantes têm surgido do uso da Inteligência Artificial generativa? Como o Direito pode atuar?  
Patricia Peck: A abordagem da ética na IA generativa segue a premissa de que deve ter um comportamento transparente e respeitar direitos autorais. Uma IA também deve seguir as leis no país em que a solução estiver sendo aplicada ou que surta efeitos. Além disso, conforme aumentamos o grau de autonomia, torna-se fundamental estabelecer compromisso com uso da IA responsável. O Direito Robótico é uma evolução do Direito Digital que passa a tratar dessas questões, e reúne princípios internacionais, como os trazidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que exigem o desenvolvimento sustentável da IA centrada no ser humano. O Direito deve atuar na recomendação dos requisitos que precisam vir de fábrica e ser seguidos pelos desenvolvedores, o que chamamos de “ethics by design”. E para os que não seguirem, a Justiça deve agir para solução dos conflitos. O papel fundamental do Direito é trazer segurança jurídica para as relações, agora entre humanos e IAs.

 

CI: A senhora escreveu 49 livros sobre Direito Digital, pode citar o que mudou nos últimos 10 anos, tanto em relação aos ataques como às medidas protetivas?  
Patricia Peck: Desde o meu primeiro livro, “Direito Digital”, percebo que o que mudou mais rápido foi a tecnologia. E cada inovação trouxe impactos no comportamento das pessoas e nas relações. Uma coisa que precisamos reforçar é que os valores são os mesmos, independentemente de qual ferramenta seja usada ou em que estágio de maturidade esteja alguma solução tecnológica. Por isso, uma educação em valores é o que nos permite caminhar adiante de forma ética. Ser honesto, ser íntegro, ser respeitoso, seja quando estamos em uma reunião, um encontro de família, ou mandando mensagens pelo WhatsApp ou mídias sociais. Nesse sentido, não mentir e não enganar, inclusive quando estamos diante de uma IA, que também deve ser usada dentro dos mesmos valores. Enfim, tudo está documentado, e a tecnologia não é boa ou ruim, mas também não é neutra, depende de como é utilizada.