juiz do trabalho do Rio de Janeiro Otávio Calvet

DIREITOS TRABALHISTAS
PARA NOVOS TRABALHOS



Reforma Trabalhista, regulamentação das novas formas de trabalho, fora da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), contribuição assistencial e fortalecimento das negociações coletivas são os principais temas debatidos pelo juiz Otávio Calvet, titular da 11ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, em entrevista exclusiva para a Carta da Indústria. “A Reforma Trabalhista apontou para a garantia de um mínimo de direitos fundamentais dos trabalhadores, mesmo fora da CLT”, defende Calvet, que também é doutor em Direito do Trabalho pela PUC de São Paulo e professor da Escola Superior de Advocacia Pública – PGE/RJ. Confira agora a entrevista, na íntegra:

 

CI: À luz da Reforma Trabalhista, quais os novos desafios nas relações de trabalho? 
Otávio Calvet: A Reforma Trabalhista é de 2017. Assim, temos alguns desafios novos como o projeto de lei que está sendo mais discutido agora, o dos trabalhadores de aplicativo, os motoristas. O maior desafio é conseguir um modelo que possa regulamentar o trabalho humano, que vem se modificando com as novas tecnologias, com aplicação de inteligência artificial, e que seja interessante tanto para o trabalhador quanto para as empresas e para a sociedade em geral. O modelo atual é muito enrijecido, o majoritário é da CLT. Ele pressupõe o trabalho subordinado, ou seja, alguém trabalha sob o comando de outro, colocando à disposição a sua força de trabalho. Esse modelo tem dificuldade de se encaixar nessas novas formas de trabalho e nas que virão.

 

CI: A Reforma Trabalhista já não tratou dessas novas formas, flexibilizando um pouco mais?
Otávio Calvet: A grande virtude da Reforma Trabalhista para essa realidade que a gente vive foi ter fomentado e dado maior segurança jurídica para o que a gente convencionou chamar de o negociado sobre o legislado. A reforma apontou uma ideia de que a gente deve garantir um mínimo de direitos, um núcleo duro de direitos fundamentais dos trabalhadores. E para além desse mínimo trabalhista, previsto na Constituição, nas convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na própria legislação que é retratada na CLT, no artigo 611 b, principalmente, nós temos a necessidade da negociação através dos sindicatos. A negociação coletiva pode fazer uma adequação à realidade de cada categoria em cada local, em cada época. Então assim, a Reforma Trabalhista teve essa grande virtude dentro do direito do trabalho clássico, que foi perceber uma necessidade de maior flexibilidade, maior agilidade na construção dos direitos trabalhistas que são necessários. É muito difícil você ter um modelo que possa atender a tudo o que já existe hoje, o que virá no futuro, que a gente não faz a menor ideia do que vai acontecer.

 

CI: De que forma a Justiça do Trabalho pode contribuir para fortalecer justamente essas negociações coletivas que o senhor estava citando?
Otávio Calvet: O principal para a Justiça do Trabalho é a compreensão de que o Poder Judiciário tem que exercer a autocontenção, se imiscuir da menor forma possível naquilo que foi decidido validamente pelas partes. Então, a própria Reforma Trabalhista traz um princípio novo, que é o princípio da intervenção mínima do Poder Judiciário. É uma ideia de que o Poder Judiciário não pode querer se substituir à ideia dos próprios negociantes por achar que não foi bom, que não foi razoável, que poderia ter sido melhor. O Judiciário tem que respeitar aquilo que os negociantes fizeram, claro, desde que seja válido. Então, o principal papel do Judiciário é não fazer interferência, por entender que poderia ter sido feito melhor ou diferente, por uma concepção muito comum do que a gente chama de ativismo judicial.

 

CI: O que seria esse ativismo judicial?
Otávio Calvet: Muita gente confunde ativismo judicial com judicialização. A gente vive uma judicialização imensa no Brasil. Desde a Constituição de 88, a gente abriu as portas do Judiciário, ao consagrar muitos direitos novos na Carta Magna. Naturalmente, a gente acaba trazendo o cidadão para discutir as suas relações dentro do Poder Judiciário. Por exemplo, você não paga nada para entrar com uma reclamação trabalhista. E você só vai pagar alguma coisa se você for condenado e não tiver gratuidade de Justiça. E conseguir gratuidade na Justiça do Trabalho é o majoritário. Então isso incentiva as pessoas a entrarem diretamente com uma ação, o que deveria ser o último recurso. Isso é a judicialização da vida humana.

 

CI: E o ativismo judicial?
Otávio Calvet: É algo que tem virtudes e defeitos. Para mim, os defeitos superam as virtudes, porque o ativismo é aquela ideia de que o juiz, ele não é mais um ser neutro, que aplica as leis de forma fria. O juiz tem que estar em consonância com a sociedade, com o momento em que ele vive. É um ator para ajudar a concretizar direitos fundamentais, direitos humanos. A grande questão é, quando você dá uma liberdade muito grande para o juiz, ele pode utilizar essa liberdade de forma distorcida a partir do seu próprio viés ideológico, de qualquer sinal, de qualquer cor. O perigo do ativismo é o juiz ir além do que deveria ter ido e causar um estado de insegurança jurídica muito grande. O Judiciário muitas vezes não compreende qual foi a vontade majoritária da sociedade expressada pelo Legislativo, que é quem faz as regulamentações. Então, o ativismo, às vezes, confunde o papel do juiz, que devia ser um papel bem limitado, com a ideia de que é um ator em prol da construção de algo e menospreza o papel do Legislativo. Esse é o grande perigo do ativismo judicial.

 

CI: Mas o senhor acha que toda essa modernização do trabalho, com o híbrido e outras novas formas de contratação, pode contribuir para retirar direitos dos trabalhadores?
Otavio Calvet: É possível que sim. Mas essa visão é porque o modelo de direitos trabalhistas que a gente construiu tem uma ideia de um tipo de empresa e um tipo de relação jurídica do passado. Cada vez está mais difícil se adequar no momento. Então a construção de novas regulamentações não vai conseguir garantir provavelmente toda a gama de direitos trabalhistas que foi construída para a relação de emprego. Mas isso não significa necessariamente retrocesso. Não significa necessariamente uma redução de proteção trabalhista, porque o fato é que hoje nós temos um modelo dual de trabalho, quem se encaixa na CLT consegue todos os direitos trabalhistas, ou quem não se enquadra na CLT, não tem direito. A gente tem que sair dessa dualidade.

 

Juiz Otávio Calvet: "novos modelos, ainda que não garantam todos os direitos tradicionalmente assegurados, podem constituir também um avanço na proteção do trabalho humano" (Fotos: Arquivo Pessoal)

 

CI: É o que está crescendo mais, não é, essa contratação fora da CLT?
Otavio Calvet: Hoje a gente já tem o mercado informal em aproximadamente 60% dos trabalhadores. A gente tem que ter a compreensão de que o modelo celetista é válido. Foi muito importante, continua tendo a sua importância na nossa sociedade, mas ele já não atende mais a todo o fenômeno trabalhista. Acho que essa é a grande contribuição que também a magistratura pode dar de compreender que novos modelos, ainda que não garantam todos os direitos tradicionalmente assegurados, podem constituir também um avanço na proteção do trabalho humano, até porque o trabalhador hoje quer coisas diferentes. Os próprios motoristas de aplicativo – eu assisti a uma audiência pública na Câmara – o representante dos motoristas falou que 90% dos motoristas não querem CLT. Eles querem um modelo mais flexível de trabalho.

 

CI: Qual a importância de as empresas terem segurança jurídica nessas novas relações de trabalho?  
Otávio Calvet: Segurança jurídica a gente consegue de duas formas principais. Mas a gente está precisando evoluir, é preciso existir uma regulamentação nova que possa atender a esses anseios. E a segunda é o Poder Judiciário compreender o seu papel e não fazer interpretações ativistas que podem gerar ou fomentar essa insegurança. A questão da segurança jurídica para as empresas é extremamente importante, porque, quando você dá segurança jurídica, a empresa, o empresário, o investidor podem se incentivar a investir, a produzir. Tem que superar aquela mentalidade de eterno antagonismo entre trabalhador e empresa, porque a gente precisa de empresa sendo criada para gerar trabalho e prosperando para que o trabalho seja mantido e cada vez aumente mais.

 

CI: O senhor pode falar sobre a contribuição assistencial, prevista na Reforma Trabalhista? 
Otávio Calvet: A contribuição assistencial, até o julgamento do STF, era considerada como possível de ser cobrada apenas dos associados de sindicatos. Depois da decisão do Supremo, fixou-se que é possível cobrar de todos os integrantes da categoria, filiados ou não ao sindicato, desde que assegurado ao trabalhador o direito de oposição. O problema é que o STF, quando fixou a norma, não definiu qual seria o valor máximo dessa contribuição, a frequência e nem como exercitar o direito de oposição.

 

CI: O Supremo decidiu e isso está gerando muita controvérsia?
Otávio Calvet: Para resolver esses problemas, a gente vai ter dois julgamentos, um para pacificar o entendimento do próprio Supremo. Foram postos embargos de declaração. A nova decisão do STF, provavelmente, deve delimitar mais a matéria. A segunda ação é no Tribunal Superior do Trabalho (TST), sobre o exercício do direito de oposição. Então todas as ações em curso no TST sobre esse tema estão suspensas.

 

CI: O senhor pode esclarecer o que é contribuição assistencial. E se agora ela pode ser cobrada de todos os trabalhadores?
Otávio Calvet: A contribuição assistencial sempre existiu, mas era só para os filiados da categoria. O problema foi que, quando a Reforma Trabalhista modificou a CLT e transformou a contribuição sindical compulsória, que era o antigo imposto sindical, em contribuição facultativa, houve uma queda de 90% na arrecadação dos sindicatos. A adesão aos sindicatos é baixa no Brasil e gira em torno de 7%. Eles têm muita dificuldade de arrecadar um valor suficiente para poder fazer seu trabalho. Foi isso que motivou o STF a favor da contribuição assistencial para os sindicatos. Primeiro, o Supremo entendeu que a contribuição assistencial não poderia ser cobrada de todos, só dos associados.

 

CI: Mas essa questão mudou, não é?
Otávio Calvet: Sim, o STF mudou o entendimento justamente para que os sindicatos conseguissem essa nova fonte de receita para atuarem na negociação coletiva, principalmente. O Supremo entendeu que agora como temos o negociado sobre o legislado, os sindicatos têm que ser fortes para poderem fazer uma boa negociação. O STF pegou esse gancho e recriou essa fonte de custeio, que é a contribuição assistencial. Na verdade, isso é um exemplo de ativismo judicial, porque o STF mudou o seu entendimento para poder atender uma necessidade. Isso mostra como o ativismo é perigoso para a segurança jurídica. Nesse momento, ninguém sabe o que fazer em relação à contribuição assistencial.

 

CI:  Uma das dúvidas é se é possível ser criada a contribuição assistencial para todos os trabalhadores, associados ou não. O que o STF já decidiu em relação a esse tema?
Otávio Calvet: A lei até fala que qualquer desconto no salário para receitas sindicais, o empregado tem que autorizar previamente, mas não está claro se essa autorização é individual, se é coletiva, se basta o sindicato mandar uma lista para conseguir o desconto no salário. Então isso tudo está gerando realmente muita dúvida na prática.

 

CI: Em relação também aos sindicatos patronais, eles podem também fazer esse desconto? 
Otávio Calvet: A tese do Supremo fala só de sindicato de trabalhadores, mas assim, o entendimento, acho que é bem tranquilo, que é o mesmo. Pode ser aplicado para o sindicato patronal, porque é o mesmo artigo de lei, que é o artigo 513 da CLT, que fala sobre isso. O artigo é aplicável tanto para sindicato de trabalhadores quanto para o sindicato patronal. Então me parece que é tranquilo entender nesse sentido.