Publicado em 03/07/2024 - Atualizado em 03/07/2024 15:13
DIREITOS TRABALHISTAS
PARA NOVOS TRABALHOS
Reforma Trabalhista, regulamentação das novas formas de trabalho, fora da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), contribuição assistencial e fortalecimento das negociações coletivas são os principais temas debatidos pelo juiz Otávio Calvet, titular da 11ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, em entrevista exclusiva para a Carta da Indústria. “A Reforma Trabalhista apontou para a garantia de um mínimo de direitos fundamentais dos trabalhadores, mesmo fora da CLT”, defende Calvet, que também é doutor em Direito do Trabalho pela PUC de São Paulo e professor da Escola Superior de Advocacia Pública – PGE/RJ. Confira agora a entrevista, na íntegra:
CI: À luz da Reforma Trabalhista, quais os novos desafios nas relações de trabalho?
Otávio Calvet: A Reforma Trabalhista é de 2017. Assim, temos alguns desafios novos como o projeto de lei que está sendo mais discutido agora, o dos trabalhadores de aplicativo, os motoristas. O maior desafio é conseguir um modelo que possa regulamentar o trabalho humano, que vem se modificando com as novas tecnologias, com aplicação de inteligência artificial, e que seja interessante tanto para o trabalhador quanto para as empresas e para a sociedade em geral. O modelo atual é muito enrijecido, o majoritário é da CLT. Ele pressupõe o trabalho subordinado, ou seja, alguém trabalha sob o comando de outro, colocando à disposição a sua força de trabalho. Esse modelo tem dificuldade de se encaixar nessas novas formas de trabalho e nas que virão.
CI: A Reforma Trabalhista já não tratou dessas novas formas, flexibilizando um pouco mais?
Otávio Calvet: A grande virtude da Reforma Trabalhista para essa realidade que a gente vive foi ter fomentado e dado maior segurança jurídica para o que a gente convencionou chamar de o negociado sobre o legislado. A reforma apontou uma ideia de que a gente deve garantir um mínimo de direitos, um núcleo duro de direitos fundamentais dos trabalhadores. E para além desse mínimo trabalhista, previsto na Constituição, nas convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na própria legislação que é retratada na CLT, no artigo 611 b, principalmente, nós temos a necessidade da negociação através dos sindicatos. A negociação coletiva pode fazer uma adequação à realidade de cada categoria em cada local, em cada época. Então assim, a Reforma Trabalhista teve essa grande virtude dentro do direito do trabalho clássico, que foi perceber uma necessidade de maior flexibilidade, maior agilidade na construção dos direitos trabalhistas que são necessários. É muito difícil você ter um modelo que possa atender a tudo o que já existe hoje, o que virá no futuro, que a gente não faz a menor ideia do que vai acontecer.
CI: De que forma a Justiça do Trabalho pode contribuir para fortalecer justamente essas negociações coletivas que o senhor estava citando?
Otávio Calvet: O principal para a Justiça do Trabalho é a compreensão de que o Poder Judiciário tem que exercer a autocontenção, se imiscuir da menor forma possível naquilo que foi decidido validamente pelas partes. Então, a própria Reforma Trabalhista traz um princípio novo, que é o princípio da intervenção mínima do Poder Judiciário. É uma ideia de que o Poder Judiciário não pode querer se substituir à ideia dos próprios negociantes por achar que não foi bom, que não foi razoável, que poderia ter sido melhor. O Judiciário tem que respeitar aquilo que os negociantes fizeram, claro, desde que seja válido. Então, o principal papel do Judiciário é não fazer interferência, por entender que poderia ter sido feito melhor ou diferente, por uma concepção muito comum do que a gente chama de ativismo judicial.
CI: O que seria esse ativismo judicial?
Otávio Calvet: Muita gente confunde ativismo judicial com judicialização. A gente vive uma judicialização imensa no Brasil. Desde a Constituição de 88, a gente abriu as portas do Judiciário, ao consagrar muitos direitos novos na Carta Magna. Naturalmente, a gente acaba trazendo o cidadão para discutir as suas relações dentro do Poder Judiciário. Por exemplo, você não paga nada para entrar com uma reclamação trabalhista. E você só vai pagar alguma coisa se você for condenado e não tiver gratuidade de Justiça. E conseguir gratuidade na Justiça do Trabalho é o majoritário. Então isso incentiva as pessoas a entrarem diretamente com uma ação, o que deveria ser o último recurso. Isso é a judicialização da vida humana.
CI: E o ativismo judicial?
Otávio Calvet: É algo que tem virtudes e defeitos. Para mim, os defeitos superam as virtudes, porque o ativismo é aquela ideia de que o juiz, ele não é mais um ser neutro, que aplica as leis de forma fria. O juiz tem que estar em consonância com a sociedade, com o momento em que ele vive. É um ator para ajudar a concretizar direitos fundamentais, direitos humanos. A grande questão é, quando você dá uma liberdade muito grande para o juiz, ele pode utilizar essa liberdade de forma distorcida a partir do seu próprio viés ideológico, de qualquer sinal, de qualquer cor. O perigo do ativismo é o juiz ir além do que deveria ter ido e causar um estado de insegurança jurídica muito grande. O Judiciário muitas vezes não compreende qual foi a vontade majoritária da sociedade expressada pelo Legislativo, que é quem faz as regulamentações. Então, o ativismo, às vezes, confunde o papel do juiz, que devia ser um papel bem limitado, com a ideia de que é um ator em prol da construção de algo e menospreza o papel do Legislativo. Esse é o grande perigo do ativismo judicial.
CI: Mas o senhor acha que toda essa modernização do trabalho, com o híbrido e outras novas formas de contratação, pode contribuir para retirar direitos dos trabalhadores?
Otavio Calvet: É possível que sim. Mas essa visão é porque o modelo de direitos trabalhistas que a gente construiu tem uma ideia de um tipo de empresa e um tipo de relação jurídica do passado. Cada vez está mais difícil se adequar no momento. Então a construção de novas regulamentações não vai conseguir garantir provavelmente toda a gama de direitos trabalhistas que foi construída para a relação de emprego. Mas isso não significa necessariamente retrocesso. Não significa necessariamente uma redução de proteção trabalhista, porque o fato é que hoje nós temos um modelo dual de trabalho, quem se encaixa na CLT consegue todos os direitos trabalhistas, ou quem não se enquadra na CLT, não tem direito. A gente tem que sair dessa dualidade.
CI: É o que está crescendo mais, não é, essa contratação fora da CLT?
Otavio Calvet: Hoje a gente já tem o mercado informal em aproximadamente 60% dos trabalhadores. A gente tem que ter a compreensão de que o modelo celetista é válido. Foi muito importante, continua tendo a sua importância na nossa sociedade, mas ele já não atende mais a todo o fenômeno trabalhista. Acho que essa é a grande contribuição que também a magistratura pode dar de compreender que novos modelos, ainda que não garantam todos os direitos tradicionalmente assegurados, podem constituir também um avanço na proteção do trabalho humano, até porque o trabalhador hoje quer coisas diferentes. Os próprios motoristas de aplicativo – eu assisti a uma audiência pública na Câmara – o representante dos motoristas falou que 90% dos motoristas não querem CLT. Eles querem um modelo mais flexível de trabalho.
CI: Qual a importância de as empresas terem segurança jurídica nessas novas relações de trabalho?
Otávio Calvet: Segurança jurídica a gente consegue de duas formas principais. Mas a gente está precisando evoluir, é preciso existir uma regulamentação nova que possa atender a esses anseios. E a segunda é o Poder Judiciário compreender o seu papel e não fazer interpretações ativistas que podem gerar ou fomentar essa insegurança. A questão da segurança jurídica para as empresas é extremamente importante, porque, quando você dá segurança jurídica, a empresa, o empresário, o investidor podem se incentivar a investir, a produzir. Tem que superar aquela mentalidade de eterno antagonismo entre trabalhador e empresa, porque a gente precisa de empresa sendo criada para gerar trabalho e prosperando para que o trabalho seja mantido e cada vez aumente mais.
CI: O senhor pode falar sobre a contribuição assistencial, prevista na Reforma Trabalhista?
Otávio Calvet: A contribuição assistencial, até o julgamento do STF, era considerada como possível de ser cobrada apenas dos associados de sindicatos. Depois da decisão do Supremo, fixou-se que é possível cobrar de todos os integrantes da categoria, filiados ou não ao sindicato, desde que assegurado ao trabalhador o direito de oposição. O problema é que o STF, quando fixou a norma, não definiu qual seria o valor máximo dessa contribuição, a frequência e nem como exercitar o direito de oposição.
CI: O Supremo decidiu e isso está gerando muita controvérsia?
Otávio Calvet: Para resolver esses problemas, a gente vai ter dois julgamentos, um para pacificar o entendimento do próprio Supremo. Foram postos embargos de declaração. A nova decisão do STF, provavelmente, deve delimitar mais a matéria. A segunda ação é no Tribunal Superior do Trabalho (TST), sobre o exercício do direito de oposição. Então todas as ações em curso no TST sobre esse tema estão suspensas.
CI: O senhor pode esclarecer o que é contribuição assistencial. E se agora ela pode ser cobrada de todos os trabalhadores?
Otávio Calvet: A contribuição assistencial sempre existiu, mas era só para os filiados da categoria. O problema foi que, quando a Reforma Trabalhista modificou a CLT e transformou a contribuição sindical compulsória, que era o antigo imposto sindical, em contribuição facultativa, houve uma queda de 90% na arrecadação dos sindicatos. A adesão aos sindicatos é baixa no Brasil e gira em torno de 7%. Eles têm muita dificuldade de arrecadar um valor suficiente para poder fazer seu trabalho. Foi isso que motivou o STF a favor da contribuição assistencial para os sindicatos. Primeiro, o Supremo entendeu que a contribuição assistencial não poderia ser cobrada de todos, só dos associados.
CI: Mas essa questão mudou, não é?
Otávio Calvet: Sim, o STF mudou o entendimento justamente para que os sindicatos conseguissem essa nova fonte de receita para atuarem na negociação coletiva, principalmente. O Supremo entendeu que agora como temos o negociado sobre o legislado, os sindicatos têm que ser fortes para poderem fazer uma boa negociação. O STF pegou esse gancho e recriou essa fonte de custeio, que é a contribuição assistencial. Na verdade, isso é um exemplo de ativismo judicial, porque o STF mudou o seu entendimento para poder atender uma necessidade. Isso mostra como o ativismo é perigoso para a segurança jurídica. Nesse momento, ninguém sabe o que fazer em relação à contribuição assistencial.
CI: Uma das dúvidas é se é possível ser criada a contribuição assistencial para todos os trabalhadores, associados ou não. O que o STF já decidiu em relação a esse tema?
Otávio Calvet: A lei até fala que qualquer desconto no salário para receitas sindicais, o empregado tem que autorizar previamente, mas não está claro se essa autorização é individual, se é coletiva, se basta o sindicato mandar uma lista para conseguir o desconto no salário. Então isso tudo está gerando realmente muita dúvida na prática.
CI: Em relação também aos sindicatos patronais, eles podem também fazer esse desconto?
Otávio Calvet: A tese do Supremo fala só de sindicato de trabalhadores, mas assim, o entendimento, acho que é bem tranquilo, que é o mesmo. Pode ser aplicado para o sindicato patronal, porque é o mesmo artigo de lei, que é o artigo 513 da CLT, que fala sobre isso. O artigo é aplicável tanto para sindicato de trabalhadores quanto para o sindicato patronal. Então me parece que é tranquilo entender nesse sentido.