Sandoval Feitosa, diretor geral da Aneel, em foto oficial de divulgação

MAIS PODER AO
CONSUMIDOR DE ENERGIA


O cenário energético do Brasil vem se destacando nos últimos anos por uma série de desafios e oportunidades que moldam o futuro do setor. Em entrevista exclusiva à Carta da Indústria, o diretor geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Sandoval Feitosa, conta sobre o que espera para os próximos anos. Os principais pontos abordam a redução de tarifas, o novo papel das distribuidoras, o enfrentamento dos subsídios e dos furtos de energia e o potencial do Rio de Janeiro na transição energética global. Para Feitosa, a busca por soluções sustentáveis se entrelaça com a necessidade de manter a estabilidade econômica do setor e garantir o acesso justo à energia para todos os consumidores, que no futuro terão cada vez mais poder.

 

CI: Na sua opinião, quais as principais medidas para reduzir a tarifa de energia?  
Sandoval Feitosa: A Aneel tem apresentado em todos os fóruns, aos quais é demandada, que a principal razão do alto valor das tarifas de energia elétrica no Brasil decorre da crescente elevação dos encargos setoriais, ou seja, políticas públicas e subsídios cruzados custeados pelas tarifas, sobretudo a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). A Aneel criou o subsidiômetro, para dar luz à quantidade e peso das políticas públicas custeadas por meio das tarifas. Fechamos 2023 com mais de R$ 40 bilhões e a tendência é de crescimento. É necessária uma ampla discussão sobre a racionalização dos subsídios, revogação de subsídios desnecessários, rediscutir a forma de distribuição dos custos dos subsídios, mantendo, claro, a segurança jurídica. Sem dúvida um debate que a sociedade e o setor produtivo devem fazer com o Congresso Nacional e o governo federal.

 

No que se refere ao custo da geração de energia, os contratos de geração feitos pelo governo federal na época do racionamento, como o Programa Prioritário de Termelétricas (PPT), o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (Proinfa) e os primeiros Contratos Regulados de termelétricas, que tiveram seu papel na segurança do abastecimento e na diversificação da matriz, estão se encerrando, e essa é uma boa oportunidade para reavaliação dos impactos, vantagens e, principalmente, oportunidade para estabelecermos novas bases para a matriz nacional, dado que esses contratos impactaram bastante as tarifas dos consumidores, em particular dos consumidores cativos. Somente na Light, por exemplo, o fim do contrato com a UTE Norte Fluminense vai aliviar as tarifas em 11,5%.

 

Na transmissão, o foco da Aneel tem sido o contínuo aprimoramento dos editais dos leilões e nossos contratos de concessão. Temos sido bem-sucedidos em atrair competição para os leilões. Entre 2019 e 2024, licitamos R$ 96 bilhões em expansão da transmissão, com deságio médio de 47%, o que significa benefício para os consumidores de R$ 173 bilhões. Outra aposta da Agência está na melhor sinalização de preços. A nova metodologia de sinal locacional favorece que consumidores e geradores se conectem onde há maior espaço na rede, o que vai otimizar o uso do sistema que temos e reduzir a necessidade de expansão, permitindo o maior equilíbrio no custo da tarifa, atribuindo aos usuários que mais onerem a rede que paguem mais pelo uso da rede.

 

Por fim, na distribuição, a Aneel tem sido bem-sucedida em estimular ganhos de eficiência e produtividade e capturá-los em benefício da modicidade tarifária. Trata-se do único componente da tarifa dos brasileiros que é deflacionário, ou seja, que cresceu menos do que os índices de inflação nos últimos anos. Aqui, a renovação das concessões é uma oportunidade para modernizar a cláusula econômica dos contratos, e queremos investir, principalmente, em novas modalidades tarifárias, de maneira que os consumidores possam escolher aquela que melhor se ajusta a seu perfil de consumo. Criamos uma plataforma de teste dessas novas modalidades tarifárias que estão começando a decolar em todo o país.

 

Sandoval Feitosa: "Temos diretrizes para expandir a matriz elétrica, para que a nossa eletricidade renovável possa apoiar a geração de produtos verdes, promovendo o desenvolvimento industrial do país" (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

 

CI: Como reduzir o impacto do roubo de energia sobre a conta dos consumidores que pagam a conta de luz?  
Sandoval Feitosa: Esse talvez seja o mais complexo de todos os desafios do setor elétrico e não há uma abordagem única. Temos que contar com o esforço dos governos federal, estadual e municipal e com diferentes métodos e abordagens por parte das distribuidoras. O que temos visto com o passar das décadas é que são necessárias políticas públicas para que as concessionárias tenham condições de atuar em toda a sua área de concessão, aplicando os métodos tradicionais de combate às perdas, como as inspeções, as regularizações e o investimento em novas tecnologias. Temos também cobrado das distribuidoras que testem novas abordagens, como a construção de melhores relacionamentos com as comunidades, numa estratégia ganha-ganha em que a distribuidora entregue serviços de qualidade e receba corretamente pelo serviço que entrega.

 

CI: Qual a sua visão sobre o papel das distribuidoras no mercado de energia no futuro?  
Sandoval Feitosa: Assim como já temos hoje, no futuro, as distribuidoras de energia elétrica continuarão com o papel fundamental de gestão da infraestrutura física de transporte de energia e com o papel complementar de contratação de energia elétrica para aqueles consumidores não migrarem para o Ambiente de Contratação Livre (ACL). Uma série de mudanças tecnológicas e de comportamento de consumo também levarão a uma necessária evolução das distribuidoras. A integração de geração de energia de forma distribuída, como painéis solares residenciais, demanda das distribuidoras o gerenciamento da complexidade crescente dessas redes, para garantir a estabilidade e a qualidade do fornecimento. A adoção de redes inteligentes (com medidores inteligentes e sistemas de automação) permitirá às distribuidoras uma melhor gestão da prestação do serviço, com respostas mais rápidas a interrupções na rede e maior eficiência operacional.

 

O consumidor do futuro terá maior poder: com maior controle da qualidade do serviço prestado (a partir da utilização de medição inteligente, por exemplo) e com o direito de escolha da empresa de quem comprará a sua energia, ou até mesmo, como já temos hoje, gerar a sua própria energia. Com esse empoderamento e maior consciência dos consumidores, as distribuidoras precisarão se envolver mais com seus clientes, oferecendo informações transparentes, opções de tarifa inovadoras e serviços personalizados.

 

CI: Como o Rio de janeiro pode contribuir com a transição energética mundial e transformar isso em riqueza para o Brasil?  
Sandoval Feitosa: No que tange à transição energética mundial, sabemos que é um processo de transformação da matriz primária em direção a uma economia de baixo carbono, em prol da sustentabilidade. Esse aspecto ambiental da transição tem como pano de fundo a urgência e os desafios impostos pela célere mudança no clima, fenômeno atrelado ao aquecimento global e à acelerada emissão de gases de efeito estufa (GEE).

 

Nesse processo de descarbonização, o Brasil está em excelente posição, como uma das mais renováveis e diversificadas do mundo. O Brasil é atualmente o sexto maior produtor de energia eólica onshore e sexto maior produtor de energia solar fotovoltaica (centralizada e distribuída) do mundo. Além disso, temos um parque térmico no qual cerca de metade das usinas utilizam combustíveis renováveis, como a biomassa. Ainda contamos com a fonte termonuclear que, embora em um percentual pequeno, contribui para prover flexibilidade operativa ao sistema, especialmente pelo fato de as usinas estarem localizadas próximas ao maior centro de carga do país.

 

Mesmo com todo esse movimento de expansão e de diversificação, contamos com cerca de 50% da capacidade de geração de energia elétrica por meio das usinas hidrelétricas – uma fonte de energia importante para a prestação de serviços auxiliares essenciais nesse contexto de grande entrada de fontes renováveis que possuem bastante variabilidade. Dezenove por cento do consumo final atual de energia do país é na forma de eletricidade, o que mostra muito espaço para a eletrificação dos usos finais de energia.

 

Feito esse contexto, considero que, do ponto de vista nacional, temos diretrizes para expandir a matriz elétrica, para que a nossa eletricidade renovável possa apoiar a geração de produtos verdes, promovendo o desenvolvimento industrial do país. Todavia, entendo que a transição energética deve ter um olhar para as particularidades locais; cada região possui suas características, oportunidades e desafios específicos. O Rio de Janeiro é o maior produtor de petróleo e gás natural do Brasil, por isso possui uma matriz elétrica mais intensiva em carbono que a média brasileira. Assim, é relevante o olhar local quando falamos de descarbonização, e não podemos deixar de lado o impacto socioeconômico das indústrias fósseis no estado. Isso porque o estado pode desenvolver tecnologias de baixo carbono para a indústria de petróleo e gás natural, promovendo tecnologias como a captura, uso e sequestro de carbono (CCUS), produções e aplicações diversas de hidrogênio de baixo carbono.

 

É importante esclarecer que o hidrogênio é considerado uma alternativa significativa ao uso dos combustíveis fósseis. A obtenção de hidrogênio a partir de fontes renováveis impulsiona o crescimento da demanda por eletricidade, possibilitando uso de fontes de baixo carbono como opção de armazenamento energético. Nesse sentido, a Aneel lançou uma chamada estratégica para apoiar o desenvolvimento de projetos de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) e espera a submissão de projetos até 1º de julho.

 

Dessa forma, vejo que o estado do Rio possui várias potencialidades estratégicas para uma transição energética que promova desenvolvimento socioeconômico. O grande desafio é aproveitar as muitas possibilidades de investimentos, geração de empregos e desenvolvimento de cadeias produtivas derivadas das transições energéticas.

 

CI: O mercado livre coloca o consumidor em uma posição de mais controle sobre a decisão de compra de energia. Espera-se que em breve todos os consumidores possam acessar esse mercado. Como a Aneel vem se preparando para essas mudanças?  
Sandoval Feitosa: A Aneel já se prepara há anos para a abertura do mercado de energia elétrica a todos os consumidores brasileiros. Há dois anos, concluímos um estudo sobre as medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura do mercado livre para consumidores com carga pequena. Esse estudo contou com discussões com a sociedade, por meio de uma Tomada de Subsídios com cerca de 700 contribuições. Foram abordados diversos aspectos afetos à abertura do mercado livre para os consumidores que ainda não podem escolher de quem comprar sua energia.

 

A partir desse estudo, a Aneel identificou diversas ações no âmbito da regulação para implementação. Várias dessas ações já foram implementadas, como a criação de gerência específica na Aneel para monitoramento do mercado, visando tratar, por exemplo, de abusos de poder de mercado; o aprimoramento da comercialização varejista, das regras de suspensão do fornecimento de unidades consumidoras modeladas na CCEE e do procedimento de corte de consumidores inadimplentes.

 

Outras ações estão em andamento, como o estabelecimento de padrões para instalação de medição inteligente. Adicionalmente, a Aneel também mantém interações com reguladores de outros países (como OFGEM, do Reino Unido; e ERSE, de Portugal), trocando experiências e estudando como foi feita abertura do mercado de energia elétrica no resto do mundo.