António Nóvoa em palestra na Casa Firjan

O FUTURO ESTÁ
NA ESCOLA


O mundo foi capaz de combater a Covid-19, mas não consegue educar todas as crianças, uma questão bem mais fácil de resolver, segundo afirma António Nóvoa, professor catedrático no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e presidente do Comitê de Pesquisa e Redação da Comissão Internacional da Unesco sobre os Futuros da Educação. Nóvoa é uma das principais vozes atuais em um tempo de metamorfose da escola e do mundo. Entre seus trabalhos nesse campo de atuação está o relatório “Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação”, elaborado para a Unesco com a sua participação. Recentemente, ele esteve no Rio de Janeiro a convite da Firjan para abordar os Desafios da educação do século XXI.

 

Sua presença foi celebrada no Encontro de Educadores do Século XXI, evento realizado pela Casa Firjan no fim do ano passado, quando a Firjan SESI lançou um portfólio voltado para os Educadores da Rede Básica, com cursos, debates e encontros, visando a reflexão sobre os desafios da educação na contemporaneidade.

 

“A escola é talvez a única instituição que ainda nos resta para tentar termos uma sociedade convivial. E falar de sociedade convivial nos dias de hoje, com tantas guerras, é central”, ressalta Nóvoa. Conheça abaixo o pensamento inspirador de Nóvoa.

 

Educação do século XXI  
Pensar em desafios para a educação do século XXI é pensar logo naquela espécie de soco no estômago, ao saber que mais de 10% das crianças do mundo continuam fora da escola. Estamos falando de 250 milhões crianças do mundo que continuam fora das salas de aula. E não apenas isso. Cerca de metade dos jovens sai da escola, aos 15 anos, sem aprendizagens básicas. Nas escolas do mundo todo, com 2 bilhões de alunos, imagine que 1 bilhão sai sem aprendizagens básicas.  

Pandemia e educação  
A pandemia piorou essa situação, criando uma espécie de “gap geracional” das aprendizagens. E, 200 anos depois da humanidade ter decidido que todas as crianças deveriam estar na escola como algo obrigatório para todos, tendo se tornado um contrato social, a humanidade não está sendo capaz de educar todas as crianças e jovens. Esse é um enorme fracasso civilizacional. Eu devo dizer, com sinceridade: combater a Covid-19 é mais difícil do que conseguir educar todas as crianças. Porém, no caso da pandemia, a humanidade se mobilizou e combateu em três ou quatro anos esse problema de forma global. Não conseguimos resolver um problema que é mais fácil de resolver do que o problema da Covid-19.  


 

Nóvoa no Encontro de Educadores do Século XXI, na Casa Firjan (Foto: Paula Johas): "Os professores são mestres da humanidade"


 

Tecnocentrismo não é o caminho  
Mesmo em relação a crianças que estão bem integradas à escola, parece faltar um rumo de futuro. Não sabemos o que ensinar, não sabemos como nos orientarmos bem. Ninguém tem respostas. Podemos conversar sobre isso e tentar encontrar algumas respostas provisórias. De início, digo que é preciso combater tendências e ilusões que parecem às vezes muito inovadoras, como domesticação e tecnocentrismo, pois a tecnologia deve ser ferramenta e não a solução em si. As soluções são pedagógicas. A Unesco publicou um relatório mostrando que a tecnologia criou mais desigualdades durante a pandemia. É preciso ter cuidado com ilusões e defender, sim, a importância da escola e dos professores, a começar pela escola pública. Não na dicotomia pública ou privada, mas no sentido de ser para o público e para o bem comum.  

Metamorfose  
Nada acontece naturalmente na educação. A aprendizagem e o conhecimento não acontecem naturalmente. Não basta imergir as crianças no conhecimento. É preciso trabalhar o conhecimento nesse espaço, onde o tempo ali seja protegido, e as crianças possam errar, sem serem humilhadas, sem serem destruídas. Isso faz parte do pensar nesse novo contrato social da educação, onde o desenvolvimento para o bem comum e o bem público se complementa, trazendo não a diminuição do que foi construído, mas implantando uma metamorfose, uma transformação das práticas do século XIX, para que a nova escola possa atender as atuais ansiedades e desafios.  

Novos ambientes educativos  
O ambiente educativo tradicional da sala de aula foi uma invenção extraordinária, e a professora primária, com seu quadro negro e as suas caixas de giz, foi quem educou o mundo. Mas a escola precisa se reinventar e, da maneira mais simples, reorganizar esses novos ambientes educativos, onde o trabalho seja o centro da pretendida transformação. E isso quer dizer que nesse novo espaço o aluno escreve, estuda sozinho, estuda em grupo, pesquisa, realiza projetos, resolve problemas, desenvolve temas, faz criações e não fica apenas sentado, ouvindo o mestre. Cooperação, convergência, colaboração, convivialidade e cidadania são conceitos que fazem parte das diretrizes para a construção da educação do século XXI e estão no centro da proposta do relatório da Unesco “Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação”.   

Cooperação  
Com relação a cooperação, mais importante que dar aulas é instituir uma pedagogia que faça com que os alunos estudem e trabalhem uns com os outros, em cooperação.  A exemplo da reforma curricular de Harvard, ao considerarem que os alunos aprendem mais um com os outros do que com os próprios professores, é preciso criar condições e espaços para essa prática.  

Convergência  
Se na pedagogia a palavra-chave é cooperação, no currículo ela é convergência. Mais importante que ministrar o conteúdo de uma disciplina é conseguir que alunos estudem temas, façam projetos e mobilizem o conhecimento a partir dessa realidade. Nós importamos a organização da Ciência para o currículo escolar no século XIX. E a questão é que a Ciência, atualmente, já não se organiza dessa maneira e nós ficamos com o antigo modelo importado. Atualmente não mais se pensa por disciplina, mas por grandes temas, conforme descrito por estudos do Massachusetts Institute of Technology (MIT) quando se refere à terceira revolução científica, a revolução da convergência. A Europa, por exemplo, não tem editais de Ciências divididos por apoio à matemática, apoio à física, apoio à química ou apoio à história. Eles são organizados considerando os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), e as universidades e grupos de ciências organizam equipes multidisciplinares para tratar desses problemas.  

Colaboração  
Considerando a colaboração, penso que mais que ser um bom professor individualmente é preciso trabalhar colaborativamente com os colegas. Não digo isso no momento de dar sua aula em si, que é uma atividade particular em um ambiente educativo individual. Essa ação é esperada nos novos espaços educativos, onde é preciso que haja a colaboração e troca entre alunos e mestres. Ou seja, uma ação através de trabalho conjunto.  

Convivialidade  
Sobre a convivialidade, podemos dizer que, tão importante quanto os conhecimentos, são os sentimentos, as emoções, as relações e saber viver com os outros. As escolas hoje são centrais para aspirarmos a possibilidade de uma sociedade convivial por ser talvez a única instituição que nos resta para tentar desenvolver esse conceito para a sociedade. É importante falarmos sobre isso, especialmente no momento das guerras em que vivemos entre Israel e Gaza, Ucrânia e Rússia e as guerras na África. A ciência nem sempre é capaz de ser esse lugar em comum; as instituições estão no estado em que estão; as redes sociais estão como estão, um ambiente em que matamos uns aos outros com palavras. Por isso, a escola tem que ser esse ambiente sagrado e não agressivo. Se há duas coisas que as escolas podem fazer agora são: aprender a trabalhar com os outros e aprender a viver com os outros.  

Cidadania  
Por fim, temos a sociedade se relacionando com o conceito de cidadania, já que tão importante como o que se passa dentro da escola é como se age no ambiente público, fora da escola. É o que Paulo Freire chamava de cidade educadora. A escola serve para sermos livres e não estarmos sós e para ensinar tudo o que nos une e o que nos liberta. Para isso, temos que perceber que os professores, acima de tudo, são mestres de humanidade. António Damásio, um dos mais importantes neurocientistas em atividade, diz em seu livro “Sentir e Saber” que ninguém pode aprender sem emoções; que não há sentimento sem conhecimento, que é uma reação conosco e com os outros. Isso porque não podemos adquirir conhecimentos apenas sob o ponto de vista cognitivo, pois conhecer é um ato emocional.  

Como agir?  
Os conceitos e relações apresentados sobre os desafios para a educação do século XXI suscitam duas perguntas sobre o que podem fazer os professores e o que podem fazer os gestores públicos para contribuírem para essa metamorfose. Com relação aos professores, chegamos a uma resposta simples, mas que foi depurada durante quatro anos de estudos que culminaram no relatório da Unesco. O mais importante é que as pessoas se envolvam em iniciativas e projetos de mudança e não fiquem à espera de uma nova lei, de um novo currículo, de uma nova política, de um novo livro, de uma nova teoria, de uma nova tecnologia. Não há solução, não há novidade. Em educação já foi tudo dito, tudo descoberto e não há nada a descobrir. Anísio Teixeira resumiu bem o que é preciso para a escola se reinventar ao declarar que já havia visto tanta coisa, lido tanta coisa, visto tanta proposta política, visto tanto currículo, que agora o que tinha era um desespero mudo pela ação. Para um professor ou uma professora, a alegria não está em ter ou ser, mas em fazer. E, para além de fazer, compartilhar e publicar o que é feito, para construirmos um movimento público de transformação da escola. Eu acredito que, no caso dos professores, santos de casa fazem milagres. O milagre não está na tecnologia, numa teoria de educação extraordinária, não há milagres numa política educativa espetacular. Há milagres aqui, agora, nas pequenas utopias onde as coisas nascem.

 

Mas não basta, certamente. Há desafios também para os gestores públicos, que precisam compreender a necessidade de reforçar as escolas, dando autonomia à organização a partir de dentro e dando condições de flexibilidade ao currículo. Criando, assim, condições para que possam emergir novas ideias, novas propostas, novas relações pedagógicas, novas convergências curriculares, novas colaborações. É preciso apoiar iniciativas de mudança e transformação dos professores, tirando do caminho deles burocracias, dando liberdade e incentivando a colaboração. Entendendo que, apesar de todos os aceleradores pedagógicos, os professores, conforme disse Darcy Ribeiro, continuam sendo o nervo e o músculo da educação. É importante saber que o futuro está na escola, mas só uma escola diferente será capaz de enfrentar os desafios do futuro.

 

Para saber mais:  
Leia também sobre a pesquisa da Firjan em parceria com a Unesco – Combate à evasão no Ensino Médio: desafios e oportunidades, que trouxe os principais obstáculos a serem vencidos na luta contra a evasão de jovens do Ensino Médio brasileiro.