Pesquisador Paulo Nassar

MEMÓRIA ORGANIZACIONAL:
DE ARQUIVO A ATIVO


Paulo Nassar mostra como a memória corporativa gera valor tangível — do tempo de resposta em crises ao ganho de eficiência de novos colaboradores e na comunicação

 

Em entrevista exclusiva à Carta da Indústria, Paulo Nassar, diretor presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje) e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA USP), mostra como museus e centros de memória funcionam como infraestrutura de conhecimento. Eles reduzem riscos reputacionais, alimentam programas de ESG, aceleram a integração de novos colaboradores (onboarding) e a inovação e fortalecem a cultura. “Quando a história é tratada como ativo, ela protege o presente e abre caminho para o próximo ciclo de crescimento”, afirma.

 

No seu livro sobre memória corporativa, Nassar evoca Jano, o deus romano que olha para trás e para a frente. A metáfora cabe ao momento: ao celebrar as raízes da indústria fluminense, a Firjan amplia o diálogo entre passado, presente e futuro com o novo portal Memória da Indústria. O professor explica por que uma boa política de memória não é nostalgia: é governança, gestão de risco, aprendizado e reputação — um ativo que conecta tradição e inovação com impacto no resultado.

 

Carta da Indústria: Qual é a importância da preservação da memória organizacional para a sustentabilidade das empresas a longo prazo?
Paulo Nassar: A memória organizacional é o lastro simbólico que conecta passado, presente e futuro. Sem ela, o longo prazo se dissolve em uma sucessão de curtos prazos ditados pela tirania dos indicadores. Preservar a memória é manter vivo o palimpsesto (possibilidade de raspar o papiro para escrever de novo) organizacional, permitindo que cada geração reescreva narrativas de origem, crises e transformações. Como lembra Paul Ricoeur, a narrativa é o que dá forma ao tempo vivido, construindo identidades. Empresas que cultivam sua memória não apenas sobrevivem, mas criam coerência histórica e reforçam sua licença social para operar. Assim como Jano, o deus romano, a memória corporativa olha para trás, a fim compreender as origens, e para frente, buscando construir o futuro.

 

CI: Como a memória corporativa pode ajudar as organizações a mediar tradição e inovação em um cenário de transformações aceleradas?
Paulo Nassar: A memória corporativa é plataforma de experimentação, não de nostalgia. Ela oferece repertório de valores e aprendizados que podem ser remixados para gerar o novo. Tradição bem narrada não aprisiona, inspira. A filosofia no Kaizen Toyota é exemplo: ao mesmo tempo em que honra sua cultura de origem, impulsiona inovação tecnológica. Memória garante que o novo seja coerente com o DNA da organização, evitando rupturas desorientadoras.

 

CI: Como garantir que a memória não seja vista como custo, mas como investimento estratégico para o futuro?
Paulo Nassar: A memória precisa ser traduzida também em valor de negócio. Museus e centros de memória funcionam como hubs de gestão de conhecimento, alimentando decisões estratégicas, programas de treinamento e políticas de ESG. Eles reduzem riscos reputacionais, fortalecem cultura e geram ativos intangíveis que blindam a empresa contra a obsolescência cultural. Em vez de custo, são um hedge simbólico contra o esquecimento e um recurso para a inovação. Funcionam como o deus romano Jano, com duas faces — uma voltada ao passado e outra ao futuro — ligando, a partir do presente, tradição e inovação.

 

CI: De que forma a memória empresarial contribui para a formação da identidade cultural e econômica de uma região, como o estado do Rio de Janeiro?
Paulo Nassar: Empresas são também arqueólogas de territórios. Ao preservar e compartilhar sua história, ajudam a contar a história da própria região — suas indústrias, seus trabalhadores, suas conquistas. No caso do Rio de Janeiro, a memória da indústria é parte essencial do patrimônio cultural e econômico. Ativar essa memória é fortalecer o pertencimento e o orgulho local, transformando-o em energia simbólica para novos ciclos de desenvolvimento.

 

Paulo Nassar
O pesquisador Paulo Nassar ensina que o primeiro desafio das empresas para preservar suas memórias é o da curadoria (Foto: Divulgação)

 

CI: Como os centros de memória ajudam a fortalecer laços de pertencimento entre colaboradores, comunidades locais e stakeholders externos?
Paulo Nassar: Centros de memória e museus corporativos são “templos seculares” onde o passado se encontra com o presente para projetar o futuro. Eles permitem que colaboradores reconheçam seu trabalho como parte de uma narrativa maior, que comunidades locais se identifiquem com o papel da empresa e que stakeholders externos encontrem coerência entre discurso e prática. São também espaços de reconciliação simbólica e de transparência, reduzindo tensões e ampliando confiança. Funcionam como o deus romano Jano, com duas faces — uma voltada ao passado e outra ao futuro — ligando, a partir do presente, tradição e inovação.

 

CI: Na sua visão, quais são os principais desafios enfrentados pelas organizações ao tentarem preservar sua memória institucional?
Paulo Nassar: O primeiro desafio é o da curadoria: o que preservar, como preservar e para quem preservar. O segundo é o da governança: como evitar que a memória seja capturada por agendas passageiras ou por interesses exclusivamente de marketing. O terceiro é o da perenidade: memória requer orçamento, tecnologia e continuidade. François Hartog alerta para o risco do presentismo — o culto ao instante que sufoca a perspectiva histórica. O maior risco é que a memória se torne espetáculo de efemérides ou peça de propaganda, perdendo sua densidade.

 

CI: Por que é importante cultivar a memória de forma contínua, em vez de acioná-la apenas em efemérides e celebrações pontuais?
Paulo Nassar: Quando a memória é acionada apenas em aniversários, ela vira espetáculo e perde força pedagógica. Uma memória contínua é processual: está presente em treinamentos, rituais de onboarding, programas de mentoria, comunicação interna e inovação. Ela se torna um sistema vivo de gestão do conhecimento, alimentando o dia a dia da organização e permitindo que a cultura se renove sem romper com suas raízes.

 

CI: De que forma a memória pode inspirar novos produtos, serviços e narrativas, sem aprisionar a empresa ao passado?
Paulo Nassar: Memória é laboratório criativo. Ao revisitar seus arquivos e histórias, uma empresa encontra inspiração para novos produtos, campanhas e experiências. A Lego é exemplo disso ao relançar linhas clássicas que encantam adultos e crianças. O desafio é usar o passado como trampolim e não como âncora — o que exige curadoria e interpretação criativa, não repetição literal.

 

CI: Quais iniciativas você considera exemplares no Brasil ou no exterior que demonstram forte relação entre a memória organizacional e a inovação, identidade e responsabilidade histórica?
Paulo Nassar: No Brasil, o Centro de Memória da AngloGold Ashanti, em Nova Lima, preserva quase 200 anos da mineração de ouro e transforma essa trajetória em processo educativo, turístico e de engajamento comunitário. O Museu da B3, em São Paulo, traduz a história do mercado financeiro em experiência interativa e educativa. E o Mercado Livre, em Osasco, documenta sua trajetória digital para engajar colaboradores e sustentar sua cultura de inovação. No exterior, o Museu do Tempo da Swatch e a Volkswagen Stiftung mostram como memória pode ser experiência sensorial e responsabilidade ética — inclusive enfrentando capítulos difíceis do passado.

 

CI: Como o projeto Memória da Indústria, da Firjan, se insere na preservação da história industrial do Brasil?
Paulo Nassar: O projeto é um gesto de cidadania institucional: constrói um arquivo vivo, acessível, que serve a pesquisadores, professores, jornalistas, gestores públicos e cidadãos. Não apenas preserva documentos, mas inspira políticas públicas, narrativas institucionais e empresariais e ações educativas. É exemplo de como a indústria pode falar de si para além dos balanços, deixando ao futuro um legado de aprendizado e de orgulho industrial.