Publicado em 12/11/2024 - Atualizado em 12/11/2024 13:59
TECNOLOGIAS E IA
TRANSFORMAM A EDUCAÇÃO
Com o avanço das tecnologias e inteligências artificiais (IA), as práticas educacionais e sociais vêm enfrentando desafios profundos nos sistemas de ensino e exigências profissionais. Para o professor Luciano Meira, mestre em Psicologia Cognitiva pela UFPE e PhD em Educação Matemática pela UC Berkeley, a escola precisa estar conectada com a sociedade e enfrentar as mudanças que vêm com essas novas tecnologias. Ou seja, não pode abandonar as pessoas a um uso deseducado da tecnologia.
Cofundador e coordenador de Ciência e Inovação da Joy Education, edtech do Grupo Proz Educação e professor de Psicologia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Luciano Meira participou recentemente do 2º Encontro de Educadores do Século XXI, promovido pela Casa Firjan, e debateu sobre a ludicidade na educação e os alertas para o futuro.
Nesta entrevista exclusiva, o professor explora como a IA e outras tecnologias digitais podem ser aliadas na construção de uma educação mais crítica, criativa e conectada com a contemporaneidade.
CI: Para quais mudanças e desafios na sociedade e na escola os professores precisam se preparar?
Luciano Meira: Ainda nos anos 1970, Paulo Freire disse que a escola tem que estar conectada ao seu tempo. A escola não pode se afastar das suas relações com a contemporaneidade. O que tiver na sociedade fica dentro da escola, porque tem que ser objeto de uma reflexão crítica, ser objeto de uso. A escola não pode abandonar as pessoas à sua própria sorte ao uso deseducado, digamos assim, das tecnologias. As pessoas têm que aprender a usá-las da forma mais criativa e crítica possível.
Os professores precisam aprender a usar e promover atividades que os alunos possam desenvolver coisas, processos criativos e resolução de problemas com novas dimensões, instrumentalizadas com as tecnologias digitais. Só que para isso deve-se criar uma estrutura, um ambiente de uso, formar professores e uma liderança para trazer os melhores recursos. A escola é um ambiente de experimentação e diálogo.
Quando falamos de tecnologia, sempre pensamos no digital, mas o livro é uma tecnologia. Aliás, a escola negava no começo, não queria usar porque o que importava era o discurso do professor. Obviamente isso foi rapidamente vencido e os livros se tornaram a base de sustentação de toda a educação escolar. Depois de muitos séculos surgiram os computadores, e o mesmo drama foi criado. E agora com a IA. Tudo pode, e deve, entrar na escola como objeto de reflexão. Só que é mais do que isso, são instrumentos que criam ambientes de transformação digital nas organizações, inclusive na escola.
CI: Como seria possível reinventar a prática pedagógica em tempos de inteligência artificial?
Luciano Meira: O primeiro passo é reinventar os cursos de Pedagogia e as Licenciaturas. Tudo começa ali. Paralelamente a isso, o país deve ter uma estratégia educacional para as pessoas. Eu investiria muito na educação profissional e tecnológica. A Firjan faz isso muito bem, inclusive, e nós estamos fazendo isso também no Proz Educação, que é a rede em que sou head de Pedagogia.
Para mudar, tem que haver formação de professores, estratégia nacional com foco em recursos específicos e tem que respeitar o professor em várias dimensões, valorizando a profissão, a começar pelos salários. Se você não respeita nem o salário mínimo que um professor deve ganhar, não há forma de transformar nada.
Se isso tivesse pronto, aí sim seria possível jogar o jogo da inovação. Trazer uma liderança transformadora para a escola, porque parte considerável das resistências que existem para transformação não vem do professor, e sim da gestão escolar. A gestão tem um conjunto de variáveis muito complexas para lidar. Então a gente teria que dar atenção a essas pessoas também. E tem que discutir currículo. Não posso chegar e mandar inovar, porque o professor vai dizer que tem outras 20 coisas para ensinar. Sempre digo: jogue cinco fora. A rede tem que ver o que não faz mais sentido ensinar.
CI: Quais podem ser os mecanismos possíveis para engajar os alunos em um cenário em que a tecnologia e a IA estão cada vez mais presentes?
Luciano Meira: As crianças da Educação Infantil geralmente são superfelizes, elas brincam, fazem coisas legais que são significativas. À medida que você entra no 1º ano do Fundamental II, a escola vai perdendo engajamento e atenção. E por quê? Isso acontece porque as crianças e os jovens não brincam, não se divertem, não têm problemas interessantes para resolver. Isso monta uma tragédia. Não só a evasão, mas até naqueles que ficam na escola vemos um abandono afetivo e intelectual. É um quadro que precisa mudar urgentemente, através de pequenas mudanças dentro da sala de aula. Cabe aos professores e à gestão fazerem coisas que valorizem o significado, para a criança construir algo, em vez de só anotar.
As crianças amam construir, mas odeiam aulas. A aula é aquela ideia de transmissão do conhecimento que é inadmissível hoje, em um mundo com tantas possibilidades de aprendizagem e descoberta.
CI: Que tipo de formação ou capacitação você acredita que os educadores precisam para lidar com a IA e explorá-la ao máximo na educação?
Luciano Meira: A primeira formação é pedagógica, não tem nada a ver com a inteligência artificial em si. Porque, na verdade, para decidir qual IA utilizar e como, primeiro deve haver um plano pedagógico. Qual minha missão, o que eu pretendo, quais ferramentas e ambientes vou escolher e o que vai ser mais eficaz de acordo com meu plano? São decisões baseadas na Pedagogia.
A escola não é sobre inteligência artificial, e sim sobre aprendizagem. Isso posto, a IA entra no meu plano de ensino, e o professor deve ter tempo e espaço para se dedicar a explorar essas inteligências e decidir quais se articulam melhor com a pedagogia que se decide fazer. A pedagogia fica no centro das decisões do professor, e a IA, na periferia. Ela é capturada para dentro desse centro para resolver questões pedagógicas de ensino e aprendizagem.
CI: A tecnologia é aliada ou inimiga da criatividade? Como educadores podem incentivar a criatividade e o pensamento crítico dos alunos em um ambiente cada vez mais tecnológico?
Luciano Meira: Depende. Se não tiver um projeto pedagógico, muito provavelmente a inteligência artificial ou qualquer outra tecnologia será uma inimiga, porque como não sei o que fazer do ponto de vista pedagógico, vou ser dominado pelo uso da tecnologia. Serão exercícios tecnológicos, mas não pedagógicos. Mas se eu tiver a estratégia pedagógica, posso até errar na escolha e não tem problema algum. Não de maneira catastrófica, mas essa é uma hora de experimentação e diálogo. A escola só não pode se desresponsabilizar disso.
CI: Como a avaliação da aprendizagem pode ser transformada com o uso dessas tecnologias, sem perder de vista as individualidades de cada aluno?
Luciano Meira: Essa é provavelmente a questão mais difícil relacionada a esses usos. A gente ainda não sabe muito bem como avaliar competências e habilidades sem IA. E agora com ela, o negócio ganhou dimensões de uma complexidade ainda mais acentuada, inclusive sobre questões de autoria.
Se demando ensaios escritos dos estudantes, não há sequer ferramentas o suficiente para identificar se o que eles fizeram foi IA ou não. As ferramentas costumam errar em pelo menos 20% dos casos, o que é muito. Não se pode errar em duas a cada 10 avaliações. As avaliações, que já tinham que mudar, agora precisam mudar ainda mais intensamente para a gente capturar o que é de fato humanamente interessante do ponto de vista do desenvolvimento de competências e habilidades.
CI: É possível introduzir tecnologias e IA sem ampliar ainda mais as desigualdades?
Luciano Meira: No Brasil, não. Sem as estratégias de acesso que envolvem conectividade e disponibilidade de recursos e políticas públicas que convidam para esse mundo, só vai aumentar a desigualdade no país. As pessoas que já têm esse tipo de acesso vão continuar seus privilégios e vamos aumentar a distância dos grupos sociais. Sem uma estratégia nacional, a desigualdade só vai aumentar.
CI: Como a educação pode preparar o aluno para o trabalho do futuro e para um futuro de incertezas?
Luciano Meira: A primeira coisa é tirar o foco do conteúdo e focar em competências. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tenta mudar esse foco. É o desenvolvimento de competências relacionadas à cultura digital que vão preparando, com o tempo, os estudantes para um enfrentamento de desafios que a gente nem sabe quais são. Quando desenvolvo uma competência colaborativa, essa competência deveria ser usada seja lá qual for o futuro, porque a gente sempre vai precisar de outras pessoas.
A segunda coisa é que a escola deve engajar as pessoas em problemas e situações complexas. Estamos em um século decisivo para o futuro da humanidade. Devemos acostumar as pessoas ao enfrentamento de grandes desafios, porque todos os trabalhos são afetados pela emergência de novas tecnologias, especialmente as digitais. Devemos preparar as pessoas para esse futuro, em que coisas como IA estão capturando você, seus movimentos, localização, opiniões, dados, e ter uma compreensão para usar isso em favor da humanidade.
A escola tem que preparar as pessoas para o entendimento acerca de como a inteligência artificial funciona, como as emergências climáticas podem alterar nossos futuros, o futuro do trabalho, e enfocar em competências de resolução de problemas complexos e tomadas de decisões em situações desafiadoras.